EM UMA MULTINACIONAL DO RAMO DE AUTOPEÇAS
Aborda-se neste artigo o sucesso de um projeto realizado em uma grande multinacional do ramo de autopeças, que teve como objetivos: reduzir o nível dos estoques da companhia e seus custos relativos, como melhorar o atendimento aos clientes internos, que até então eram prejudicados com a ruptura de fornecimento de matérias primas para a produção e também por falta de componentes para a montagem.
Introdução
As indústrias automobilísticas chegaram, ao final dos anos 1990 e início da década de 2000, em um estágio, tecnologicamente avançado. O aumento da produtividade e uma nova fase de investimentos, tanto para modernização e ampliação da capacidade produtiva do parque existente, quanto para a construção de plantas novas, foram responsáveis pelo rápido crescimento da produção mundial de veículos. Dados da ANFAVEA – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores – indicam que no ano de 1999 foram produzidos 1.356.714 veículos e em 2000 1.691.240 unidades, apontando um crescimento de 24,66%, aproximadamente.
Acompanhando a tendência global, a indústria de autopeças, além de novos investimentos, teve que alterar seu modelo de gestão para atender as recentes necessidades do mercado. Neste contexto a multinacional, objeto deste artigo, formou junto com outra empresa do ramo uma Joint Venture, para desenvolver, produzir e vender tecnologia para veículos em geral. A partir desta união, uma nova diretoria foi formada e para ganhar vantagens competitivas muitos projetos foram colocados em prática. O caso aqui apresentado teve como objetivo a redução dos níveis dos estoques e dos seus custos relativos.
Na época, a situação dos estoques da companhia não era boa, pois havia falta de matérias primas para a produção e de componentes e peças para a montagem, ou seja, comprava-se o que não era necessário e deixava-se de comprar o que era preciso. Para piorar ainda mais a situação, o valor físico e financeiro do estoque se elevava mês a mês. Os pedidos eram entregues fora do prazo, desagradando clientes, e ainda gerando gastos excessivos com transporte, horas extras etc. É bem provável que muitos leitores já se depararam com situações semelhantes, não é mesmo? Boa parte das empresas nacionais ou multinacionais ainda enfrenta este tipo de situação!
O escopo do projeto foi elaborado por meio de um levantamento dos problemas que afetavam os controles de estoque da companhia e que serviria de base para se preparar o plano de ação, o plano de controle e a avaliação dos resultados obtidos.
O levantamento dos dados revelou a seguinte situação:
Ø Alto nível do inventário;
Ø Baixa acuracidade do estoque;
Ø Baixo giro de estoque;
Ø Muitos Itens obsoletos em estoque (principalmente improdutivos);
Ø Estrutura dos almoxarifados inadequada;
Ø Número de funcionários maior que o necessário;
Ø Baixa qualidade na manutenção dos parâmetros do sistema de cálculo de necessidades de materiais;
Ø Atendimento aos clientes internos e externos deficiente.
Para melhor compreender a complexidade da gestão de estoques, seguem dados extraídos de pesquisa publicada em 2005 pela APICS - American Production Inventory Control Society –, realizada entre empresários americanos, na qual foi perguntado: quais eram seus objetivos na gestão do estoque?
Ø 53,02 % - Responderam que gostariam de melhorar o controle dos estoques;
Ø 13,49 % - Gostariam de melhorar o nível de atendimento;
Ø 10,74 % - Aumentar o giro dos estoques;
Ø 10,14 % - Reduzir os níveis de estoque (inventário);
Ø 7,61 % - Melhorar o relacionamento com fornecedores;
Ø 5,00 % - Melhorar nível de serviço ao cliente.
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Ressalta-se aqui que no Brasil não foi encontrado estudo similar para
Ressalta-se aqui que no Brasil não foi encontrado estudo similar para comparar, mas acredita-se que o cenário seja pior que o indicado na pesquisa norte americana.
O Projeto
A primeira providência foi criar um comitê diretivo, formado pelos diretores e gerentes da empresa, que tinham a responsabilidade de acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos e os resultados atingidos. A seguir foram selecionados profissionais qualificados das diversas áreas da empresa, que pudessem colaborar de forma efetiva com o projeto. Cada um destes profissionais foi nomeado responsável por um grupo de material, peças ou componentes do estoque.
Os recursos financeiros disponíveis para investimento no projeto eram pequenos e os resultados esperados deveriam vir, principalmente, da dedicação e comprometimento da equipe selecionada para realizá-lo.
Em reunião realizada com o comitê diretivo, ficou definido que o objetivo para o valor financeiro dos estoques da companhia seriam 30% menores, sendo que a operação, em nenhuma hipótese, poderia ser prejudicada.
Para melhor controlar as fases do projeto, desenvolveu-se um cronograma para acompanhamento, que contemplava as seguintes informações: a fase do projeto (em percentual atingido na tarefa), período de duração, responsabilidade por tarefa e agendamento das reuniões (que eram realizadas quinzenalmente). Para facilitar o monitoramento, desenvolveu-se um catálogo de atividades onde as etapas eram descritas de forma detalhada. No esquema abaixo (figura 01) pode-se observar de forma sistêmica a abrangência do projeto:
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Esquema de abrangência do projeto
Fonte: Elaborado pelo próprio autor |
Fases do Projeto
1. Definição dos critérios para a aceitação do programa de vendas e suas prováveis alterações:
a. Mês atual: Zero
b. Primeiro mês: até 5%
c. Segundo mês: até 5%
d. Terceiro mês: até 10%
Os planejadores deveriam seguir a antecedência automática gerada pelo sistema de necessidades de materiais, que variavam de acordo com a família de produto. Exemplo: cinco dias para a família de produtos “A” e três dias para a família de produtos”B”. A distribuição das necessidades dos clientes seria realizada diariamente e qualquer alteração no programa seria valorada para avaliar o impacto nos estoques.
2. O MRPII – Planejamento dos Recursos de Manufatura – passou a ser “rodado” quinzenalmente (antes era mensal).
O PCP - Planejamento e Controle da Produção –, responsável em receber e analisar as demandas de vendas definia o período firme de planejamento de materiais e a confirmação dos pedidos era enviada aos clientes através do EDI – Intercâmbio Eletrônico de Dados.
3. Identificação dos itens de maior valor monetário, por meio da curva ABC. O critério utilizado para classificar os itens foi:
a. Itens da curva A – 70%;
b. Itens da curva B – 20%;
c. Itens da curva C – 10%.
4. Revisão das políticas de planejamento dos estoques para itens nacionais e importados.
5. Manutenção de dados dos itens no sistema de necessidades de materiais MRP.
Criou-se rotina para revisão periódica dos parâmetros do sistema de necessidades de materiais MRP, tais como: ponto de reposição, estoque de segurança, estoque mínimo e máximo, intervalo de ordem, lead time, tamanho do lote de compra etc.
6. Definição de responsáveis para cada grupo de produto.
Para cada grupo de produto, rolamentos, pistões ou eixos, indicou-se um responsável que deveria analisar o comportamento de consumo dos itens de seu grupo de produto, parâmetros do sistema de necessidades de materiais e propor ações para reduzir o estoque. Nas reuniões de acompanhamento, realizadas quinzenalmente, o responsável apresentava seu planejamento, as ações que foram tomadas e quais foram os resultados obtidos. Estas reuniões eram extremamente dinâmicas, figuras ilustrativas (vide figura 02) eram utilizadas para facilitar a visualização. O responsável de cada grupo deveria concentrar suas análises, apenas, nos itens da curva A, que representavam 70% do valor financeiro do estoque.
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Avaliação do projeto através de figuras ilustrativas |
7. Identificação dos itens obsoletos e de giro lento de estoque.
Todos os itens, que tiveram pouca ou nenhuma movimentação nos últimos 12 meses, foram avaliados individualmente e a maior dificuldade nesta tarefa foi identificar os materiais do estoque improdutivo, que poderiam ou não ser utilizados, tais como: ferramentais, equipamentos, acessórios de máquinas entre outros. Para facilitar a identificação dos materiais improdutivos, realizou-se um show room (vide foto 01) onde líderes e supervisores de produção poderiam analisar os materiais e informar em uma planilha, que acompanhava cada um dos itens, sua possível utilidade.
Nas planilhas que acompanhavam os materiais para análise constavam as seguintes informações: aplicação, descrição do material, quantidade em estoque, data da última movimentação, valor e campo para comentários da liderança.
Já no estoque produtivo, os itens que não tiveram movimentação no período analisado (exemplo: produtos fora de linha), foram enviados para o almoxarifado de reposição e aqueles que não puderam ser reaproveitados foram destruídos e vendidos como sucata.
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Show Room para análise de materiais obsoletos do estoque improdutivo.
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8. Revisão das rotinas de recebimentos de materiais, tanto no aspecto físico como contábil.
A conferência física não poderia demorar mais do que um dia para liberação. Antes chegava há quase uma semana. A área de qualidade teve um papel muito importante nesta etapa do projeto, criando novos procedimentos para agilizar suas análises. Um deles foi exigir de todos os fornecedores o certificado de qualidade dos materiais entregues, que deveriam conter informações detalhadas sobre o material.
9. Conferência dos kanbans dos materiais em processo e dos componentes em estoque;
Os kanbans, que até então eram localizados nos almoxarifados, foram descentralizados e alocados na produção. Esta foi uma fase interessante do projeto porque contou com a colaboração de outro grupo de profissionais, que se dedicavam à implantação de células de manufatura, no modelo auto-gerenciável. Havia em cada célula um responsável em verificar a situação dos materiais, por meio de um painel, com o uso de cartões, informava aos programadores de produção e aos supridores a necessidade de reposição dos materiais.
Para que os parâmetros de controle não ficassem desatualizados, criou-se uma rotina de revisão das quantidades para cada um dos kanbans, de acordo com seu consumo. Os mesmos deveriam ser revistos periodicamente para evitar defasagem ou até mesmo para evitar a reposição indevida de peças por motivo de descontinuidade de produtos na linha de produção e montagem
10. Separação de materiais para as ordens de produção.
As matérias-primas necessárias a execução das ordens de produção seriam requisitadas em sua quantidade exata e, antes da entrega, as mesmas seriam identificadas pelos almoxarifes. As baixas do estoque ocorreriam automaticamente e não mais de forma manual como antes.
11. Revisão do BOM – Bill of Material – Lista de materiais
a. Conferência física dos materiais relacionados na lista técnica de materiais, ou seja, a cada componente montado a lista técnica era auditada para encontrar possíveis falhas;
b. Os produtos de lançamento seriam montados conforme a lista técnica de materiais, passando pela mesma auditoria. Para os produtos com montagem descontinuada (fora de linha), criou-se procedimento para determinar o ponto de corte.
12. Movimentações pendentes no sistema
Análise criteriosa e imediata para cada movimentação que ficasse pendente no sistema, tais como: bloqueios de materiais, produtos ou peças alocados e não baixados, entre outros. Nestes casos o responsável pelo inventário rotativo era acionado para indicar as causas e criar procedimentos para que falhas operacionais não ocorressem mais.
13. Itens opcionais controlados pelo SIC - Controle Estatístico do Inventário
Todos os materiais controlados pelo SIC tiveram seus parâmetros revisados. Os materiais controlados por este sistema eram os de uso opcional, exemplo: esferas, pinos e arruelas.
14. Revisão dos procedimentos para refugos de materiais, retrabalhos e da engenharia experimental (criação de protótipos).
O procedimento para refugar materiais foi revisado e todos os retrabalhos provenientes de devolução em garantia tiveram um tratamento adequado, pois, eram fonte de muitas diferenças de estoque. A partir da revisão, cada produto devolvido, em garantia, deveria possuir uma ordem de retrabalho para que as peças aplicadas fossem controladas e os custos aferidos. Na engenharia experimental, foram criados procedimentos para a retirada de agregados e peças do estoque. Boa parte destes materiais não retornava, porque eram destruídos nos testes.
15. Subcontratação.
Foram revistos os procedimentos de materiais de propriedade da Empresa, que estavam em poder de terceiros. Houve necessidade de centralizar os processos de emissão dos documentos para um controle mais rigoroso. A criação de listas técnicas de materiais e dos roteiros de fabricação foi fundamental nesta etapa.
16. Padronização de embalagens
O armazém passou por uma reestruturação, que de forma bem sintetizada, consistia em receber os materiais em embalagens e quantidades padrão. O departamento de compras desempenhou papel fundamental na negociação com os fornecedores. A estrutura dos almoxarifados foi revista e cada local de guarda foi dimensionado para receber a mesma quantidade que estava parametrizada no sistema. Caso houvesse alguma compra superior a quantidade planejada não haveria local para guardar e o material era direcionado para uma área de segregação, onde o responsável pelo grupo de produtos deveria analisar o que ocorreu e deveria relatar o fato nas reuniões periódicas.
17. Treinamento dos funcionários envolvidos
Foi previsto o treinamento de todos os funcionários que, de forma direta ou indireta, tiveram contato com os procedimentos elaborados ou revistos durante o projeto. A área de recursos humanos deu o suporte necessário para realizar e avaliar os treinamentos.
Resultados Obtidos
Ao longo de um ano, período em que o projeto foi realizado, houve muita dedicação por parte dos profissionais envolvidos e os resultados, como era de se esperar, aconteceram. A redução do estoque foi da ordem de 40%, ou seja, 10% acima do objetivo esperado, liberando o capital de giro empenhado em estoque para outras necessidades de investimento da Empresa.
O atendimento ao cliente interno melhorou muito porque a acuracidade do estoque subiu 5,2%, indo para 98,7%, ante os 93,5 % anteriores. O giro dos estoques aumentou gradativamente, durante o período de execução do projeto, sendo um dos indicadores de desempenho mais utilizados pelo grupo. As rupturas de fornecimento de peças para produção e montagem tornaram-se raros. O atendimento aos clientes externos também melhorou e os produtos passaram a ser entregues no prazo previsto, eliminando-se os fretes extras, que eram comuns no antigo modelo.
A armazenagem de materiais passou a utilizar embalagens adequadas e práticas, locais pré-definidos e menor volume de peças e componentes. Com isso, reduziu-se a necessidade de mão-de-obra em 50%, pois de 08 almoxarifes foram necessários apenas 04 (a mão-de-obra excedente foi transferida para outras áreas).
Considerações Finais
Importante ressaltar que a metodologia empregada é do conhecimento de boa parte dos leitores desta revista, porém a forma como o projeto foi idealizado e colocado em prática, envolvendo diretoria, gerência, supervisão e toda a liderança da empresa, foi seu grande diferencial. Realizar o projeto para reduzir os níveis de estoque, sem nenhum prejuízo para a operação, em apenas um ano, foi um desafio e tanto para os profissionais da Empresa. Destaca-se ainda que a transformação do modelo de gestão, proposta pela diretoria da época, foi fundamental para o sucesso dos trabalhos realizados.
O desenvolvimento e a conclusão do projeto proporcionaram melhor controle dos gastos da Empresa, no que diz respeito a estoques e fluxo de materiais e passou a exigir de seus profissionais a elaboração de um planejamento mais criterioso, tendo como principal ferramenta o sistema SAP em sua versão R/3.
Uma empresa que trabalha com estoque reduzido torna-se mais flexível e ágil em suas decisões, reduz seu lead time de fabricação, melhora a qualidade de seus controles e, principalmente, reduz e controla melhor seus custos.
Referências
APICS - American Production Inventory Control Society - www.apics.org
ANFAVEA – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores - www.anfavea.com.br
Artigo publicado na revista Mundo Logística na edição nº16 – Maio/2010.
Autor: Prof. Geraldo Cesar Meneghello