Primeiramente, esclareço que
sou ferroviário, pois ferroviário como outras categorias não comporta o prefixo
ex. O vírus ferroviarius é para sempre. Trabalhei na FEPASA – Ferrovia Paulista
S/A. por vinte anos nas áreas de planejamento e marketing, desenvolvendo
estudos e projetos, inclusive para apoio a financiamentos do Banco Mundial.
Segundamente, esta exposição
objetiva a discussão da questão da ferrovia em nosso país continental com uma
malha restrita em km/m2 de território, induzida pela recente e não terminada
crise deflagrada pelo movimento dos caminhoneiros e retomada com o
questionamento da pequena participação da ferrovia na matriz de transporte de
cargas no Brasil. Abordamos a questão por partes:
Base Econômica: A ferrovia é
um modo de transporte terrestre de alta capacidade, relativamente mais lento,
capital intensivo e que tem como módulo mínimo de comercialização o vagão com
capacidade de mais de 40 t de cargas, dependendo da relação peso/volume.
Pode-se dizer que a ferrovia trabalha no atacado e assim, explora economias de
escala e se mostra econômica (receitas > custos) na movimentação de grandes
e densos volumes de carga do ponto A para o ponto B. Seu custo econômico
(utilização de recursos) é mais baixo, mas seu custo privado pode ser mais alto,
por exigir transbordos e consolidação para carregamento, aumentando o tempo de
movimentação das cargas e por ser menos flexível na correção de falhas de
carregamento, a exemplo do que o é o transporte por navios.
Base Institucional: A
ferrovia tem sido uma organização monolítica, isto é, a propriedade, a
implantação, manutenção, a operação das instalações fixas (via permanente,
estações, sistemas de comunicações, etc.) e do material rodante (vagões e
locomotivas) e a comercialização dos serviços têm um só responsável. De forma
diferente, a rodovia tem a movimentação e comercialização sob responsabilidade
de agentes independentes (motoristas, caminhoneiros, empresas de transporte,
etc.), assim como a aviação (aeroportos, terminais e aviões) e a navegação
(portos, terminais e navios). No Brasil, a operação privada é resultado de
contratos de concessão a exemplo dos terminais portuários. Uma privatização que
foi a possível, não a desejável, pois as condições da economia brasileira à
época eram de instabilidade expressa nas altas taxas de inflação e políticas
governamentais mutáveis e não consolidadas. Os contratos de concessão foram
estabelecidos, passaram por mudanças de responsáveis e, atualmente, se
apresenta a extensão de prazo dos contratos vigentes.
Base operacional: A ferrovia
apresenta um custo alto de partida, ou seja, a locomotiva deve estar abastecida
e pronta para movimentação, a tripulação deve estar a postos e o trem (o
comboio de vagões formado). Manobras intermediárias implicam em custos e perdas
de tempo no percurso, sendo o ideal a manutenção da formação dos comboios em
sua origem até o destino, sem intervenções. O exemplo maior é o dos trens da
Vale que saem de Carajás com composição de até 300 vagões até o Porto de Ponta
da Madeira em um percurso de cerca de 800 km sem manobras intermediárias com as
locomotivas de reforço de tração já dispostas ao longo do trem.
Base física e construtiva: A
ferrovia é um sistema complexo e composto de via permanente, material de tração
(locomotivas), material rodante (vagões), sistemas de sinalização e sistemas de
comunicação. Sua capacidade é definida pelas condições geométricas em rampas
máximas das vias (elevação por extensão, ou seja, rampa de 1% corresponde a 1 m
de elevação por 100 m de via), que determinam a capacidade de tração das
locomotivas; pelos raios mínimos e níveis de sobre-elevação de curvas que
impactam as velocidades de percurso e configuração das obras de arte (viadutos,
pontes e túneis). A capacidade (número de trens) é determinada pelo tempo de
percurso entre desvios sucessivos em linhas singelas (únicas) e o tamanho dos
trens seguem a possibilidade de acomodação nesses desvios. O ideal são linhas
duplas. No Brasil, predominam linhas de bitola métrica (1,00 m de distância
entre trilhos), existindo ainda trechos de bitola larga (1,60 m). A vantagem de
uma em relação à outra é teórica e o custo da padronização é imenso.
Base de mercado: O mercado
de transporte ferroviário de cargas é aquele que apresenta volume e frequência
de disponibilização de cargas para operação da tipologia de trens com o módulo
mínimo de carga a capacidade por vagão, ou seja, seu mercado é o de grandes e
densos volumes de cargas. A questão de grandes distâncias, muitas vezes
associada à ferrovia, diz mais respeito à capacidade de diluição dos custos de
partida. A meu ver, a densidade de carga é determinística. Dessa forma, a
ferrovia atende fluxos e corredores de transporte densos onde pode exercer a
função de modo estruturador de transporte, a exemplo do modo hidroviário.
Essa condição justifica a
preponderância de mercadorias a granel no transporte ferroviário brasileiro.
Uma alternativa de viabilização e adequação às características
técnico-operacionais da ferrovia é a da consolidação/unitização de cargas, por
ventura, com a utilização de contêineres como se faz no transporte marítimo
internacional. Não há necessidade de se elencar as vantagens deste tipo de
transporte na movimentação global de mercadorias. No transporte doméstico no
Brasil, as iniciativas de transporte de contêineres por ferrovia ainda são
incipientes e pouco representativas. Um dos problemas existentes é a não
capacitação da ferrovia para a movimentação de contêineres de dois de alto nos
vagões (double-deck), predominante dos E. U. A., por exemplo. Essa adequação
exige a remodelação de pontes e viadutos e remoção de obstáculos aéreos. As
vantagens de custo são óbvias, pois não há restrição em relação à capacidade de
tração das locomotivas.
A condição de mercado é a
consolidação de cargas soltas em pontos de concentração e distribuição. Na
verdade, o caminhão já exerce essa função, mesmo em distâncias longas. O
congestionamento de estradas, como a Dutra, demonstra a existência de
movimentos densos.
Base histórico-econômica: A
implantação das ferrovias teve seu auge na segunda metade do Século XIX e
início do Século XX e se justificou na substituição da tração animal, tanto no
transporte de cargas como de passageiros interurbanos. Daí a evidência
histórica de uma malha ferroviária mais ampla no Brasil no passado. Note-se que
a ocupação econômica do território brasileiro sempre foi mais restrita à faixa
litorânea (cerca de 400 km do litoral). A principal carga das ferrovias, pelo
menos no Sul e Sudeste, era o café para exportação com as vias se originando se
destinando aos portos e, à época, a ferrovia era instrumento de penetração e
ocupação territorial com a possibilidade de implantação e expansão de
atividades econômicas.
A partir da segunda metade
do Século XX, no Brasil e no mundo ocorreu a expansão do transporte rodoviário
e as razões podem ser resumidas: 1) a indústria rodoviária apresentava efeitos
para frente e para trás (forward and backward effects) significativos, isto é,
um emprego direto criado correspondia a 5 ou 6 empregos indiretos no parque
fornecedor (indústrias de autopeças, metalúrgicas, siderúrgicas, etc.) e no
parque distribuidor (revendedoras, oficinas de manutenção, revendedoras de
peças e acessórios, postos de combustíveis, etc.). Dessa forma, os governos
incentivaram a implantação desta indústria no contexto da política geral de
substituição de importações; 2) a expansão e melhoria da tecnologia de
construção e do desempenho dos veículos e 3) A rodovia tomou da ferrovia o
papel de estrutura de ocupação e extensão econômica na direção de novas áreas.
Vale refletir sobre o modo rodoviário;
O modo rodoviário - vantagens:
1. O transporte rodoviário se destaca por
sua flexibilidade em tamanho de lotes de consignação, embalagens, tipologia de
veículos, adequação e variedade de rotas e, principalmente pela prestação de
serviços porta-a-porta;
2. O investimento em rodovias é divisível,
ou seja, na ligação do ponto A ao ponto B, a rodovia permite o acesso aos
pontos A1, A2, ...B, ao passo que a ferrovia só acaba (opera) quando termina.
Um exemplo notório no Brasil é o da Ferrovia Norte-Sul;
3. A operação imediata se justifica, pois, o
material rodante tem outro proprietário e o acesso é aberto;
4. A falta ou restrição de capacidade de
fluxos é resolvida com congestionamentos de veículos com custos distribuídos;
5. A implantação de rodovias tem exigências
técnicas mais flexíveis (pavimentos, rampas, raios de curva, faixa de domínio,
etc.) que a ferrovias e daí sua adequação como forma de penetração e acesso às
mais diferentes regiões. As modernas rodovias de primeira classe constituem-se
exceções com sofisticadas rampas máximas, raios de curva e sobre-elevação. Um
exemplo é a Imigrantes que não se sabe se é um túnel ligado por viadutos ou um
viaduto entremeado por túneis;
6. No transporte de pessoas, o automóvel é
imbatível na sua comodidade e conveniência: toma-se o carro dentro de casa,
dirige-se ao som que se escolhe, à temperatura que convém e chega-se ao destino
no exercício de uma atividade que, para muitos, é compensadora e prazerosa.
Além disso, o automóvel é objeto de desejo e de valorização do seu
proprietário. Por outro lado, na ferrovia, o transporte coletivo obriga ao
deslocamento até os pontos de embarque (estações e plataformas), obedecer a
disponibilidade de horários, de rotas, de linhas e a possibilidade de levar
bagagens, como no transporte aéreo.
Desvantagens do modo
rodoviário:
1. Modo pouco eficiente energeticamente, ou
seja, o consumo de energia por t.km ou pas.km é maior em relação a outros
modos;
2. Exige uma ocupação de áreas e uma
intervenção grande e permanente nos recursos naturais, haja vista, os volumes
de terraplanagem e impacto na natureza, por exemplo, nas rodovias de primeira
classe;
3. Emissão significativa de poluentes,
principalmente, pela combustão de derivados de petróleo;
4. Consumo preponderante de fontes
energéticas não-renováveis;
5. Sujeição a riscos de acidentes e, no
Brasil, a roubos e avarias de cargas;
6. Oferta de infraestrutura não consegue
atender a demanda. Novas vias expressas facilitam viagens, o que estimula a
demanda e a utilização de veículos que provocam congestionamentos que são
atendidos por novas infraestruturas que vão estimular a demanda de viagens.
A matriz de transporte de
cargas no Brasil: A mídia tem divulgado que a matriz de transporte cargas é
distorcida, ou seja, com preponderância em 60% das cargas movimentadas por
caminhões. Não é verdade! Esse índice (global) leva em consideração o
transporte cativo e ferroviário de cargas a granel, como o minério de ferro da
Vale. A concentração nos caminhões para movimentação de cargas interurbanas no
Brasil é de mais de 90%! Estudos da Dersa indicam esse percentual e o impacto
da paralização dos caminhoneiros ilustra esse fato! Todos os setores foram
afetados, pois as cargas intraurbanas são 100% transportadas por caminhões e
veículos de menor porte.
Por outro lado, o
desenvolvimento da economia brasileira nos últimos 30 anos apresentou uma
interiorização significativa das atividades econômicas, principalmente, do
agronegócio, o que indica a existência de densidades de atividades econômicas
que justificariam e viabilizariam o transporte ferroviário. O que fazer para
tal?
Nesse momento, cessa a
exposição de fatos e começa a sugestão provocativa de soluções. Vamos a ver!
1. Base institucional: Adoção de um modelo
de operações com a separação entre provedores da infra e superestrutura e os
operadores comerciais do transporte de carga. A Inglaterra tem um modelo
parecido, mas exacerbado com a separação de todos os subsistemas ferroviários.
2. Revisão do modelo de concessão
ferroviária. O concessionário não pode ser exclusivamente, o dono da carga, ou
seja, o negócio deve ser o transporte de cargas e não o da sua carga. Donos de
carga podem operar seus sistemas monolíticos, a exemplo que faz a Vale. Nos
TUPs (terminais portuários de uso privativo), cargas de terceiros são objeto de
negociação comercial.
3. Sistemas operacionais. Capacitação e
viabilização do transporte de contêineres em dois de alto. Implantação de
centros de concentração e distribuição de cargas. Os atualmente existentes se
baseiam no modo rodoviário e, na maior parte dos casos, não contam com acesso
ferroviário. A questão é quem deve implantar e operar. Inúmeras tentativas de
intervenção governamental fracassaram e, na maior parte das vezes, não saíram
do papel.
4. Regulamentação do acesso às vias de
operadores de transporte ferroviários autônomos, proprietários ou não de
material rodante. A questão é o que fazer nos casos de restrição de capacidade
para definição de prioridade e possibilidade de acesso. Negociações comerciais podem resolver a
questão, sendo que a regulamentação governamental indique e acompanhe
princípios básicos. A questão é complexa e diz respeito aos track-rights, ponto
de difícil solução no modelo institucional atual de concessões. As discussões
sobre tráfego mútuo no acesso ao Porto de Santos são um exemplo dessa
dificuldade.
5. Definição da intervenção e da
regulamentação governamental. O Estado é o poder concedente e seu papel deve
ser de incentivar e promover negócios, regulamentando questões macroeconômicas.
O Estado pode dizer o que se deve fazer e o que não se pode fazer, mas não como
se fazer. A operação é de responsabilidade dos ferroviários. Eles sabem
ferroviar!
Esta provocação é para se
refletir e parar de se resmungar sobre o “rodoviarismo que assolou o país” e/ou
se praticar comparações sofismáticas com outros países. Por exemplo, a malha
ferroviária norte-americana teve evolução histórica diferente atuando como
instrumento de ocupação do território e, atualmente, se justifica pela
densidade das atividades econômicas nas Costas Leste e Oeste do país. A Rússia
teve um regime de decisões centralizadas e a ferrovia é superior para enfrentar
condições do seu inverno rigoroso. O transporte de passageiros na União
Europeia é resultado de uma cultura ferroviária como símbolo da tecnologia e da
sua inovação com custos relativamente altos em relação a alternativas de
transporte coletivo, alegremente compartilhados entre usuários e governos.
Determinar-se o caminho da
solução dessa questão não é fácil, mas a consolidação de cargas com a ferrovia
como estruturadora de transportes e adoção de um modo mais eficiente
energeticamente são oportunidades inegáveis do ponto de vista econômico, social
e ambiental.
Está lançada a polêmica!
FONTE: LINKEDIN
Por: Dr. Léo Tadeu Robles - Associated Prof. at Universidade Federal do Maranhão - UFMA