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14 de julho de 2018

A FERROVIA, O TRANSPORTE FERROVIÁRIO E O BRASIL


Primeiramente, esclareço que sou ferroviário, pois ferroviário como outras categorias não comporta o prefixo ex. O vírus ferroviarius é para sempre. Trabalhei na FEPASA – Ferrovia Paulista S/A. por vinte anos nas áreas de planejamento e marketing, desenvolvendo estudos e projetos, inclusive para apoio a financiamentos do Banco Mundial.

Segundamente, esta exposição objetiva a discussão da questão da ferrovia em nosso país continental com uma malha restrita em km/m2 de território, induzida pela recente e não terminada crise deflagrada pelo movimento dos caminhoneiros e retomada com o questionamento da pequena participação da ferrovia na matriz de transporte de cargas no Brasil. Abordamos a questão por partes:

Base Econômica: A ferrovia é um modo de transporte terrestre de alta capacidade, relativamente mais lento, capital intensivo e que tem como módulo mínimo de comercialização o vagão com capacidade de mais de 40 t de cargas, dependendo da relação peso/volume. Pode-se dizer que a ferrovia trabalha no atacado e assim, explora economias de escala e se mostra econômica (receitas > custos) na movimentação de grandes e densos volumes de carga do ponto A para o ponto B. Seu custo econômico (utilização de recursos) é mais baixo, mas seu custo privado pode ser mais alto, por exigir transbordos e consolidação para carregamento, aumentando o tempo de movimentação das cargas e por ser menos flexível na correção de falhas de carregamento, a exemplo do que o é o transporte por navios.

Base Institucional: A ferrovia tem sido uma organização monolítica, isto é, a propriedade, a implantação, manutenção, a operação das instalações fixas (via permanente, estações, sistemas de comunicações, etc.) e do material rodante (vagões e locomotivas) e a comercialização dos serviços têm um só responsável. De forma diferente, a rodovia tem a movimentação e comercialização sob responsabilidade de agentes independentes (motoristas, caminhoneiros, empresas de transporte, etc.), assim como a aviação (aeroportos, terminais e aviões) e a navegação (portos, terminais e navios). No Brasil, a operação privada é resultado de contratos de concessão a exemplo dos terminais portuários. Uma privatização que foi a possível, não a desejável, pois as condições da economia brasileira à época eram de instabilidade expressa nas altas taxas de inflação e políticas governamentais mutáveis e não consolidadas. Os contratos de concessão foram estabelecidos, passaram por mudanças de responsáveis e, atualmente, se apresenta a extensão de prazo dos contratos vigentes.

Base operacional: A ferrovia apresenta um custo alto de partida, ou seja, a locomotiva deve estar abastecida e pronta para movimentação, a tripulação deve estar a postos e o trem (o comboio de vagões formado). Manobras intermediárias implicam em custos e perdas de tempo no percurso, sendo o ideal a manutenção da formação dos comboios em sua origem até o destino, sem intervenções. O exemplo maior é o dos trens da Vale que saem de Carajás com composição de até 300 vagões até o Porto de Ponta da Madeira em um percurso de cerca de 800 km sem manobras intermediárias com as locomotivas de reforço de tração já dispostas ao longo do trem.

Base física e construtiva: A ferrovia é um sistema complexo e composto de via permanente, material de tração (locomotivas), material rodante (vagões), sistemas de sinalização e sistemas de comunicação. Sua capacidade é definida pelas condições geométricas em rampas máximas das vias (elevação por extensão, ou seja, rampa de 1% corresponde a 1 m de elevação por 100 m de via), que determinam a capacidade de tração das locomotivas; pelos raios mínimos e níveis de sobre-elevação de curvas que impactam as velocidades de percurso e configuração das obras de arte (viadutos, pontes e túneis). A capacidade (número de trens) é determinada pelo tempo de percurso entre desvios sucessivos em linhas singelas (únicas) e o tamanho dos trens seguem a possibilidade de acomodação nesses desvios. O ideal são linhas duplas. No Brasil, predominam linhas de bitola métrica (1,00 m de distância entre trilhos), existindo ainda trechos de bitola larga (1,60 m). A vantagem de uma em relação à outra é teórica e o custo da padronização é imenso.

Base de mercado: O mercado de transporte ferroviário de cargas é aquele que apresenta volume e frequência de disponibilização de cargas para operação da tipologia de trens com o módulo mínimo de carga a capacidade por vagão, ou seja, seu mercado é o de grandes e densos volumes de cargas. A questão de grandes distâncias, muitas vezes associada à ferrovia, diz mais respeito à capacidade de diluição dos custos de partida. A meu ver, a densidade de carga é determinística. Dessa forma, a ferrovia atende fluxos e corredores de transporte densos onde pode exercer a função de modo estruturador de transporte, a exemplo do modo hidroviário.

Essa condição justifica a preponderância de mercadorias a granel no transporte ferroviário brasileiro. Uma alternativa de viabilização e adequação às características técnico-operacionais da ferrovia é a da consolidação/unitização de cargas, por ventura, com a utilização de contêineres como se faz no transporte marítimo internacional. Não há necessidade de se elencar as vantagens deste tipo de transporte na movimentação global de mercadorias. No transporte doméstico no Brasil, as iniciativas de transporte de contêineres por ferrovia ainda são incipientes e pouco representativas. Um dos problemas existentes é a não capacitação da ferrovia para a movimentação de contêineres de dois de alto nos vagões (double-deck), predominante dos E. U. A., por exemplo. Essa adequação exige a remodelação de pontes e viadutos e remoção de obstáculos aéreos. As vantagens de custo são óbvias, pois não há restrição em relação à capacidade de tração das locomotivas.

A condição de mercado é a consolidação de cargas soltas em pontos de concentração e distribuição. Na verdade, o caminhão já exerce essa função, mesmo em distâncias longas. O congestionamento de estradas, como a Dutra, demonstra a existência de movimentos densos.

Base histórico-econômica: A implantação das ferrovias teve seu auge na segunda metade do Século XIX e início do Século XX e se justificou na substituição da tração animal, tanto no transporte de cargas como de passageiros interurbanos. Daí a evidência histórica de uma malha ferroviária mais ampla no Brasil no passado. Note-se que a ocupação econômica do território brasileiro sempre foi mais restrita à faixa litorânea (cerca de 400 km do litoral). A principal carga das ferrovias, pelo menos no Sul e Sudeste, era o café para exportação com as vias se originando se destinando aos portos e, à época, a ferrovia era instrumento de penetração e ocupação territorial com a possibilidade de implantação e expansão de atividades econômicas.

A partir da segunda metade do Século XX, no Brasil e no mundo ocorreu a expansão do transporte rodoviário e as razões podem ser resumidas: 1) a indústria rodoviária apresentava efeitos para frente e para trás (forward and backward effects) significativos, isto é, um emprego direto criado correspondia a 5 ou 6 empregos indiretos no parque fornecedor (indústrias de autopeças, metalúrgicas, siderúrgicas, etc.) e no parque distribuidor (revendedoras, oficinas de manutenção, revendedoras de peças e acessórios, postos de combustíveis, etc.). Dessa forma, os governos incentivaram a implantação desta indústria no contexto da política geral de substituição de importações; 2) a expansão e melhoria da tecnologia de construção e do desempenho dos veículos e 3) A rodovia tomou da ferrovia o papel de estrutura de ocupação e extensão econômica na direção de novas áreas. Vale refletir sobre o modo rodoviário;

               O modo rodoviário - vantagens:

1.      O transporte rodoviário se destaca por sua flexibilidade em tamanho de lotes de consignação, embalagens, tipologia de veículos, adequação e variedade de rotas e, principalmente pela prestação de serviços porta-a-porta;

2.      O investimento em rodovias é divisível, ou seja, na ligação do ponto A ao ponto B, a rodovia permite o acesso aos pontos A1, A2, ...B, ao passo que a ferrovia só acaba (opera) quando termina. Um exemplo notório no Brasil é o da Ferrovia Norte-Sul;

3.      A operação imediata se justifica, pois, o material rodante tem outro proprietário e o acesso é aberto;

4.      A falta ou restrição de capacidade de fluxos é resolvida com congestionamentos de veículos com custos distribuídos;

5.      A implantação de rodovias tem exigências técnicas mais flexíveis (pavimentos, rampas, raios de curva, faixa de domínio, etc.) que a ferrovias e daí sua adequação como forma de penetração e acesso às mais diferentes regiões. As modernas rodovias de primeira classe constituem-se exceções com sofisticadas rampas máximas, raios de curva e sobre-elevação. Um exemplo é a Imigrantes que não se sabe se é um túnel ligado por viadutos ou um viaduto entremeado por túneis;

6.      No transporte de pessoas, o automóvel é imbatível na sua comodidade e conveniência: toma-se o carro dentro de casa, dirige-se ao som que se escolhe, à temperatura que convém e chega-se ao destino no exercício de uma atividade que, para muitos, é compensadora e prazerosa. Além disso, o automóvel é objeto de desejo e de valorização do seu proprietário. Por outro lado, na ferrovia, o transporte coletivo obriga ao deslocamento até os pontos de embarque (estações e plataformas), obedecer a disponibilidade de horários, de rotas, de linhas e a possibilidade de levar bagagens, como no transporte aéreo.

Desvantagens do modo rodoviário:

1.      Modo pouco eficiente energeticamente, ou seja, o consumo de energia por t.km ou pas.km é maior em relação a outros modos;

2.      Exige uma ocupação de áreas e uma intervenção grande e permanente nos recursos naturais, haja vista, os volumes de terraplanagem e impacto na natureza, por exemplo, nas rodovias de primeira classe;

3.      Emissão significativa de poluentes, principalmente, pela combustão de derivados de petróleo;

4.      Consumo preponderante de fontes energéticas não-renováveis;

5.      Sujeição a riscos de acidentes e, no Brasil, a roubos e avarias de cargas;

6.      Oferta de infraestrutura não consegue atender a demanda. Novas vias expressas facilitam viagens, o que estimula a demanda e a utilização de veículos que provocam congestionamentos que são atendidos por novas infraestruturas que vão estimular a demanda de viagens.

A matriz de transporte de cargas no Brasil: A mídia tem divulgado que a matriz de transporte cargas é distorcida, ou seja, com preponderância em 60% das cargas movimentadas por caminhões. Não é verdade! Esse índice (global) leva em consideração o transporte cativo e ferroviário de cargas a granel, como o minério de ferro da Vale. A concentração nos caminhões para movimentação de cargas interurbanas no Brasil é de mais de 90%! Estudos da Dersa indicam esse percentual e o impacto da paralização dos caminhoneiros ilustra esse fato! Todos os setores foram afetados, pois as cargas intraurbanas são 100% transportadas por caminhões e veículos de menor porte.

Por outro lado, o desenvolvimento da economia brasileira nos últimos 30 anos apresentou uma interiorização significativa das atividades econômicas, principalmente, do agronegócio, o que indica a existência de densidades de atividades econômicas que justificariam e viabilizariam o transporte ferroviário. O que fazer para tal?

Nesse momento, cessa a exposição de fatos e começa a sugestão provocativa de soluções. Vamos a ver!

1.      Base institucional: Adoção de um modelo de operações com a separação entre provedores da infra e superestrutura e os operadores comerciais do transporte de carga. A Inglaterra tem um modelo parecido, mas exacerbado com a separação de todos os subsistemas ferroviários.

2.      Revisão do modelo de concessão ferroviária. O concessionário não pode ser exclusivamente, o dono da carga, ou seja, o negócio deve ser o transporte de cargas e não o da sua carga. Donos de carga podem operar seus sistemas monolíticos, a exemplo que faz a Vale. Nos TUPs (terminais portuários de uso privativo), cargas de terceiros são objeto de negociação comercial.

3.      Sistemas operacionais. Capacitação e viabilização do transporte de contêineres em dois de alto. Implantação de centros de concentração e distribuição de cargas. Os atualmente existentes se baseiam no modo rodoviário e, na maior parte dos casos, não contam com acesso ferroviário. A questão é quem deve implantar e operar. Inúmeras tentativas de intervenção governamental fracassaram e, na maior parte das vezes, não saíram do papel.

4.     Regulamentação do acesso às vias de operadores de transporte ferroviários autônomos, proprietários ou não de material rodante. A questão é o que fazer nos casos de restrição de capacidade para definição de prioridade e possibilidade de acesso.  Negociações comerciais podem resolver a questão, sendo que a regulamentação governamental indique e acompanhe princípios básicos. A questão é complexa e diz respeito aos track-rights, ponto de difícil solução no modelo institucional atual de concessões. As discussões sobre tráfego mútuo no acesso ao Porto de Santos são um exemplo dessa dificuldade.

5.      Definição da intervenção e da regulamentação governamental. O Estado é o poder concedente e seu papel deve ser de incentivar e promover negócios, regulamentando questões macroeconômicas. O Estado pode dizer o que se deve fazer e o que não se pode fazer, mas não como se fazer. A operação é de responsabilidade dos ferroviários. Eles sabem ferroviar!

Esta provocação é para se refletir e parar de se resmungar sobre o “rodoviarismo que assolou o país” e/ou se praticar comparações sofismáticas com outros países. Por exemplo, a malha ferroviária norte-americana teve evolução histórica diferente atuando como instrumento de ocupação do território e, atualmente, se justifica pela densidade das atividades econômicas nas Costas Leste e Oeste do país. A Rússia teve um regime de decisões centralizadas e a ferrovia é superior para enfrentar condições do seu inverno rigoroso. O transporte de passageiros na União Europeia é resultado de uma cultura ferroviária como símbolo da tecnologia e da sua inovação com custos relativamente altos em relação a alternativas de transporte coletivo, alegremente compartilhados entre usuários e governos.

Determinar-se o caminho da solução dessa questão não é fácil, mas a consolidação de cargas com a ferrovia como estruturadora de transportes e adoção de um modo mais eficiente energeticamente são oportunidades inegáveis do ponto de vista econômico, social e ambiental.

Está lançada a polêmica!

FONTE: LINKEDIN
Por: Dr. Léo Tadeu Robles - Associated Prof. at Universidade Federal do Maranhão - UFMA

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